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Pedro Tavares Maluf

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*** Artigo disponibilizado em 1 de março de 2016***


DOIS COMENTÁRIOS SOBRE O IMPEACHMENT

Primeiro Comentário


Por Pedro Tavares Maluf*


Muito se tem falado a respeito do pedido de impeachment da presidente Dilma Roussef que tramita na Câmara dos Deputados, principalmente depois da sessão realizada pelo STF em dezembro de 2015 no julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 378, de autoria do PC do B. Neste tipo de procedimento judicial, o STF deve decidir se uma lei preexistente à Constituição de 1988 foi ou não recepcionada por ela.

No caso, trata-se da Lei 1079, de 10/04/1950, a mesma que já vigorava por ocasião do impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Na análise da referida lei, uma das decisões que provocou maior polêmica foi a de declarar que a decisão sobre processar ou não a Presidente da República é do Senado Federal, desde que autorizado pela Câmara dos Deputados. Em outras palavras: a Câmara apenas autoriza, mas não obriga, que o Senado dê início ao processo, sendo a decisão da Câmara condição necessária mas não suficiente para isso, já que o Senado não está vinculado a ela.

A decisão do STF foi criticada, por exemplo, pelo colunista Demétrio Magnoli, segundo o qual “(...) ao determinar que o Senado tem o direito de rejeitar liminarmente o início do julgamento de um impeachment aprovado pela Câmara, os juízes-legisladores promulgaram uma nova Constituição. Rebaixando a Câmara ao estatuto de órgão de assessoramento do Senado, fundaram um sistema unicameral peculiar no qual o Poder Legislativo coagula-se nos representantes das unidades federativas, com exclusão dos representantes do povo“ (“Fim de jogo”, Folha de São Paulo, 19/12/2015, pág. A-8).

Também em artigo mais recente, assinado pelo jurista Ives Gandra da Silva Martins, o STF voltou a ser alvo de crítica semelhante em razão de sua decisão. Diz o jurista, citando o art. 86 da CF/88, que “Por tal dispositivo, admitida a abertura de processo de impeachment pela Câmara, cabe ao Senado apenas dar curso ao referido processo, em nenhum momento permitindo a lei maior que o Senado julgue a Câmara, para dizer se agiu ou não corretamente. (...) A meu ver, cabe ao Senado, uma vez admitido o processo de impeachment, apenas julgar o presidente e nunca julgar, inicialmente, a Casa do Povo e, se entender que a Câmara não errou, julgar, em segundo lugar o presidente. Nenhuma das instituições legislativas está sujeita ao julgamento de outra pela lei maior (...)” (“O Supremo constituinte”, Folha de São Paulo, 15/02/2016, pág. A-3).

Em nosso entendimento, tanto a crítica do colunista quanto a do articulista não procedem: para quem teve a oportunidade de ouvir com atenção o voto do ministro Roberto Barroso – o primeiro a divergir do relator, ministro Edson Fachin – foi possível constatar sua preocupação em não inovar, baseando-se exatamente no único precedente jurisprudencial existente desde o advento da CF/88, o já mencionado impeachment do ex-presidente Collor.

Ao contrário do que afirmam Magnoli e Ives Gandra, o STF não “promulgou” nenhuma nova Constituição nem invadiu área de competência exclusiva do Congresso, apenas interpretou a Lei 1079 de modo compatível com a Constituição atual que, relativamente às competências do Senado e da Câmara – pelo menos no que diz respeito ao processo de impeachment– é bem diferente da Constituição de 1946, que vigorava em 1950, quando foi editada a Lei 1079. Em sua redação original, a lei diz nos seus arts. 24 e 80 que a acusação deveria ser decretada pela Câmara, mediante a qual tramitaria o processo, que depois remeteria sua decisão ao Senado para que ele fizesse apenas o julgamento.

É valiosa a contribuição do jurista Ives Gandra quando, em seu artigo, resgata a memória da origem do Senado, que durante a independência dos EUA foi criado por motivos pouco nobres: para evitar que ficassem sub-representados no Poder Legislativo e evitar a abolição da escravidão já desejada pelos Estados do Norte, os Estados do Sul, menos populosos, propuseram a criação de uma segunda Casa Legislativa – o Senado – que não teria como função a representação do povo proporcionalmente à população de cada Estado, mas sim a representação dos próprios Estados Federados, que teriam o mesmo número de representantes independentemente das respectivas populações.

Apesar do contexto histórico em que o Senado foi criado, tal fato nos parece irrelevante como critério de análise da matéria do impeachment tal como regulada na CF/88, até porque em nenhum momento o Senado – caso se entenda que ele está apenas autorizado, mas não obrigado, a processar o presidente – estará acusando a Câmara de ter cometido um erro, e nem a estará julgando. Se o Senado abdica de uma prerrogativa para a qual foi autorizado pela Câmara, isso não implica, de nenhum modo, um juízo de valor a respeito da decisão em si tomada pela Câmara. O argumento de que nenhuma das Casas Legislativas está sujeita ao julgamento da outra, porque não existe relação hierárquica entre elas, é um argumento meramente retórico e de mão dupla pois, se é possível afirmar que o Senado desrespeita a Câmara ao recusar processar o presidente porque se considera apenas autorizado mas não obrigado a isso, então é possível afirmar também – em sentido contrário – que a Câmara desrespeita ao Senado ao obrigá-lo a julgar o presidente sem que antes possa o próprio Senado decidir se o próprio processo deve ser ou não instaurado. Os dois argumentos – a favor e contra a autonomia do Senado em relação à decisão da Câmara – são defensáveis, mas de nenhum deles é possível concluir que uma Casa Legislativa estaria sendo submetida à outra. Voltando à disciplina prevista na Lei 1.079, ela era compatível com a Constituição então em vigor, na qual estava definida como competência privativa da Câmara “a declaração (...) da procedência ou improcedência da acusação contra o Presidente da República ...” (art. 59, inciso I, da CF/46) e como competência privativa do Senado apenas “julgar o Presidente da República nos crimes de responsabilidade ...” (art. 62, inciso I, da CF/46). O processo por crime de responsabilidade, além do julgamento propriamente dito, só era competência privativa do Senado se o acusado fosse ministro do STF ou Procurador Geral da República (art. 62, inciso II, da CF/46).

É por essa razão que na sessão de 19/12/2015 o STF declarou que o art. 80 da Lei 1079 – que reitera, embora com outras palavras, as competências da Câmara e do Senado tais como previstas nos arts. 52 e 66 da CF/46 – não foi recepcionado pela atual Constituição, já que ele é incompatível com o disposto no art. 52, incisos I e II, da CF/88 – segundo os quais é competência privativa do Senado Federal não apenas o julgamento do Presidente da República e das outras autoridades já citadas, ministros do STF e Procurador Geral da República, nos crimes de responsabilidade, mas também o prévio processamento – e é incompatível também com o disposto no seu art. 51, inciso I – segundo o qual à Câmara compete privativamente apenas a autorização para a instauração do processo contra o Presidente da República.

Portanto, na sessão de 19/12/2015 de julgamento da ADPF 378, o STF apenas repetiu – a respeito da competência privativa do Senado para processar e julgar a presidente da República por crime de responsabilidade – aquilo que já havia decidido vinte e três anos antes, em 23/09/1992 no julgamento do Mandado de Segurança nº 21.564-DF (relator original o ex-ministro Otávio Gallotii, relator para o acórdão o ex-ministro Carlos Velloso), impetrado pelo então Presidente Collor contra o Presidente da Câmara à época, o ex-deputado federal Ibsen Pinheiro. O objetivo do mandado impetrado por Collor era a obtenção de um prazo maior para exercer sua defesa perante a Câmara. A questão das competências foi abordada apenas lateralmente: a segurança foi concedida para garantir ao Presidente da República o prazo pretendido, porque – embora tenha sido reconhecida a competência privativa do Senado para o processo e julgamento – reconheceu-se também que a Câmara, embora apenas autorizando o processo, exerce um juízo de admissibilidade da acusação, circunstância em razão da qual o Presidente deve ter direito a um prazo razoável para sua defesa.

A importante diferença entre as Constituições de 1946 e 1988 foi salientada também por um personagem insuspeito – até porque já falecido em abril de 2015, quando a hipótese de impeachment da presidente que acabara de ser reeleita era cogitada apenas muito timidamente ainda –, Paulo Brossard, ex-ministro da Justiça e ex-ministro do STF que na edição de 1992 de seu livro clássico (O Impeachment, Ed. Saraiva, São Paulo, 3ª edição, 1992) – reeditado na ocasião do impeachment de Collor e muito provavelmente por causa dele – acrescenta que “(...) enquanto ao Senado competia, tradicionalmente, julgar o Presidente nos processos de responsabilidade, compete-lhe agora processá-lo e julgá-lo, e enquanto a suspensão do exercício das funções presidenciais resultava da declaração de procedência da acusação pela Câmara, decorre ela agora da instauração do processo pelo Senado. Em verdade, a Câmara perdeu uma atribuição que lhe era historicamente reservada; (...)”.


*PEDRO TAVARES MALUF é advogado, mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, procurador municipal de carreira e sócio de Processo & Decisão Consultoria


SEGUNDO COMENTÁRIO


Por Pedro Tavares Maluf*

O presente comentário diz respeito, não ao processo de impeachment abstratamente considerado, mas sim àquele que – segundo disciplina expressa da atual Constituição – deverá tramitar concretamente no Senado Federal se a Câmara o autorizar, isto é, o pedido de impeachment da presidente Dilma Roussef protocolado pelo procurador de justiça aposentado e ex-deputado federal pelo PT, Hélio Bicudo, que já se desligou do partido, e pela advogada Janaína Conceição Pascoal, sem filiação partidária.

Na sua petição, os dois cidadãos acusam a presidente da prática de crimes contra a probidade na administração e contra a lei orçamentária (art. 85, incisos V e VI, da CF/88 e art. 4º, incisos V e VI, da Lei 1079).

Os crimes contra a lei orçamentária dos quais a presidente Dilma é acusada estão devidamente tipificados no art. 10, itens 6 até 9, da Lei 1.079. Estes quatro itens foram acrescentados ao art. 10 por meio da Lei 10.028, de 19/10/2000. O item 9, proveniente da Lei 10.028, tipifica como crime a operação de crédito com entidades da Administração Indireta, como é o caso da CEF e do Banco do Brasil, responsáveis pelo pagamento de benefícios a usuários de programas sociais (tais como “Bolsa Família” e “Minha Casa Minha Vida”), as chamadas “pedaladas fiscais”.

A respeito disso, os que são contrários ao impeachment, o governo inclusive, alegam que o atraso, pelo governo, na transferência aos bancos estatais dos recursos financeiros necessários ao pagamento dos programas sociais é situação jurídica e financeira que não se confunde com empréstimo, tanto que outros governos anteriores ao atual teriam adotado a mesma prática inúmeras vezes sem que o TCU, ao que parece, jamais a tivesse questionado. Cabe lembrar que, desde o advento da Lei 10.028, Fernando Henrique Cardoso, na metade de seu segundo mandato, governou por mais de dois anos ainda – de 19/10/2000 até 31/12/2002 – e Lula pelos oito anos de seus dois mandatos consecutivos – de 1º/01/2003 até 31/12/2010.

O silêncio do TCU durante este longo intervalo de tempo – caso os dois presidentes anteriores tenham também praticado as chamadas “pedaladas fiscais” – realmente demonstra uma atitude muito discutível. Se a prática ocorria e vinha sendo tolerada, caberia ao TCU advertir o governo atual para que tal prática deixasse de ocorrer nos anos subsequentes, mas jamais poderia rejeitar as contas de 2014 com esse argumento. A rejeição das contas só estará justificada se as “pedaladas” forem realmente um fato inédito, praticado exclusivamente pelo governo atual.

De qualquer modo, a aprovação ou rejeição das contas do governo pelo TCU não é condição para a tramitação do pedido de impeachment. O TCU é órgão de auxílio ao Congresso Nacional, inclusive na apreciação das contas do Presidente da República (art. 71, inciso I, da CF/88), mas o julgamento propriamente dito é de competência exclusiva do próprio Congresso (art. 49, inciso IX, da CF/88). Ainda que o parecer fosse pela aprovação das contas, o Congresso poderia rejeitá-las e, mesmo que as aprovasse, isto não impediria o Presidente da Câmara de receber o pedido de impeachment e submetê-lo à sua regular tramitação.

Por outro lado, se os ex-Presidentes FHC e Lula também praticaram as “pedaladas fiscais” e não sofreram impeachment apesar disso, é porque nenhum cidadão os acusou da prática de tal crime perante a Câmara dos Deputados, e este órgão, nem o Senado Federal, podem agir de ofício. Em outras palavras: um erro não justifica outro – mas desde que efetivamente se possa equiparar o atraso na transferência de recursos financeiros (“pedaladas fiscais”) à operação de crédito vedada pela Lei 10.028.

Ainda a respeito da lei orçamentária, é oportuno lembrar o projeto de lei votado no final de 2014 para alteração da respectiva Lei de Diretrizes Orçamentárias, de modo a permitir ao governo abater do superávit primário então previsto – de R$ 116,1 bilhões – todas as despesas efetuadas com o Programa de Aceleração do Crescimento, num montante de R$ 127 bilhões. A aprovação do projeto de lei em si não poderia caracterizar crime já que a expressa previsão legal autorizando uma conduta não pode ser considerada crime, mas ilustra o descontrole das contas públicas e a falta de seriedade do governo que, com uma penada, suprimiu a necessidade do superávit.

Os outros crimes dos quais a presidente Dilma está sendo acusada são aqueles praticados contra a probidade na administração, em particular aquele previsto no art. 9º, item 3, da Lei 1079, qual seja, a de se omitir do dever de apurar a responsabilidade de seus subordinados quando manifesta em delitos funcionais.

A respeito disso, é oportuno lembrar a controvertida compra de parte da refinaria de Pasadena em 2006, quando a Petrobras adquiriu 50% da refinaria por um valor muito superior àquele pelo qual a Astra Oil, proprietária da outra metade, havia adquirido a refinaria inteira um ano antes. Ainda que se pudesse defender a compra no momento em que ela foi feita – o que por si só já é muito discutível –, as atitudes do governo depois que o negócio se revelou um erro, em 2008, e pelo longo período transcorrido até 2014, quando o assunto virou notícia, demonstram realmente negligência na melhor hipótese e má fé na pior.

Neste aspecto, se a presidente Dilma alega que a compra de parte da refinaria foi decidida com base no parecer equivocado de Nestor Cerveró, então, depois que o negócio se revelou um desastre, não se justificava que ele simplesmente fosse transferido em março de 2008 da área internacional para a diretoria financeira da BR Distribuidora, para finalmente ser demitido somente em março 2014, quando o problema se tornou conhecido do grande público.

Mesmo considerando que na época da transferência de Nestor Cerveró de um setor para outro tenha ocorrido em 2008 – ao invés de se determinar a apuração administrativa de sua responsabilidade pelo erro que lhe era imputado –, quando a República Federativa do Brasil ainda era presidida por Lula e não por Dilma Roussef, ela de qualquer modo, ao assumir seu primeiro mandato em 1º/01/2011, deveria tomar as providências necessárias visando à apuração de responsabilidade mas não o fez.

O impeachment da Presidente não precisa necessariamente basear-se num hipotético ato de corrupção imputado a ela, nem num hipotético enriquecimento pessoal seu às custas do erário público. De fato, até este momento nada faz crer que isso tenha ocorrido, mas tal fato é irrelevante, já que os motivos invocados para o impeachment são outros, todos com a devida fundamentação legal e constitucional.

Se as infrações das quais ela é acusada justificam ou não seu impedimento para o exercício da Presidência, é uma outra questão.

O que não parece razoável é a vã acusação de que eventual impeachment seria um golpe. Ora, golpe por definição é a tomada do poder de modo contrário à Constituição, e não com base na própria Constituição. Caso se dê à palavra “golpe” tão grande elasticidade, então seria possível também dizer que a então candidata Dilma Roussef e seu partido deram um golpe em 2014, quando se elegeram com uma plataforma de governo que sabidamente não cumpririam, porque completamente diferente daquilo que passou a ser praticado a partir de 2015, quando se iniciou seu segundo mandato.


*PEDRO TAVARES MALUF é advogado, mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, procurador municipal de carreira e sócio de Processo & Decisão Consultoria


TAGs: Impeachment; Ives Gandra Martins; Jurista; Paulo Brossard; Presidente da República; Presidente Dilma Rousseff; STF; Supremo Tribunal Federal






*** Artigo reproduzido do Boletim de Direito Administrativo em outubro de 2014***


PRECATÓRIOS

Por Pedro Tavares Maluf*


I-INTRODUÇÃO

Poucos temas de direito público são estudados de modo tão escasso, comparativamente à sua importância, quanto o tema dos precatórios. Essa pouca atenção que o tema tem recebido dos estudiosos parece se traduzir no modo como a matéria tem sido disciplinada em nível constitucional desde a promulgação da atual Constituição Federal.

Já naquela época, 1988, constatava-se enorme inadimplência das Fazendas Públicas, às quais foi concedida uma moratória de oito anos por meio do art. 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para quitação dos precatórios vencidos mas que ainda não tinham sido quitados. Tendo essa medida se revelado insuficiente como solução definitiva para o problema, o constituinte derivado concedeu uma nova moratória de dez anos em 2000(1), e instituiu dois novos regimes jurídicos em 2009(2) baseados no princípio de limitar a despesa anual com precatórios a um percentual da receita corrente líquida(3) , um dos quais com prazo de quinze anos para quitação do estoque da dívida então pendente e outro com prazo indeterminado(4) . As duas moratórias restringiram-se apenas aos débitos provenientes de precatórios de natureza não alimentar. Além disso, os precatórios abrangidos pela moratória de 1988 foram expressamente excluídos da moratória seguinte, concedida em 2000.

No presente artigo, propomo-nos fazer algumas considerações a respeito das matérias relacionadas ao tema “precatórios” que nos parecem estar disciplinadas de modo insuficiente no ordenamento jurídico.

II-NECESSIDADE DE VINCULAR EM CARÁTER PERMANENTE A DESPESA COM PRECATÓRIO À RECEITA

II.1 – As medidas adotadas pelo Congresso Nacional (das quais as duas últimas com a constitucionalidade questionada perante o STF) padecem de um mesmo equívoco: partir do pressuposto de que o problema dos precatórios é apenas transitório, conjuntural portanto, e não um problema estrutural que, se não for corretamente enfrentado, permanecerá latente com possibilidade de reincidência no futuro, ainda que o estoque da dívida atual seja significativamente reduzido. Por causa dessa equivocada percepção do problema, todas as medidas adotadas desde 1988 restringem-se essencialmente à dilação de prazos para quitação dos precatórios então pendentes, mas sem alteração da regra contida no art. 100 das disposições permanentes, segundo a qual o precatório deve ser quitado no exercício financeiro-orçamentário imediatamente seguinte àquele em que for recebido pela entidade devedora, respeitada a data limite de 1º de julho para inclusão na respectiva proposta de lei orçamentária.

Em tese, sempre haverá a possibilidade de que, para um pequeno e hipotético Município com arrecadação modesta, seja impossível a quitação integral, num único exercício financeiro, de um conjunto de precatórios cuja soma tenha valor muito elevado comparativamente à respectiva receita. Se essa possibilidade se concretizar sem que se possa imputá-la como consequência de má gestão pelo administrador local, é necessário então que o ordenamento jurídico preveja a garantia de execução da dívida sem colocar em risco as finanças municipais.

II.2 – Nesse sentido, a EC 62/2009 teve o mérito de inserir no texto constitucional o mecanismo que condiciona a despesa anual com precatório à respectiva receita corrente líquida. Mas o fez apenas como uma disposição transitória, embora o instrumento seja de necessidade permanente.

Se quase metade da receita de impostos, principal fonte de receita tributária, ingressa no Tesouro comprometida com despesas de educação e saúde (5) , então é evidente que, para a efetiva realização das referidas despesas, a receita correspondente precisa estar seguramente garantida.

Importante considerar que, de todas as despesas da Administração Pública, aquela com o pagamento de débitos provenientes de sentenças judiciárias é a única que acarreta a possibilidade de execução forçada, já que todas as demais, no caso de inadimplência do devedor, precisam ser antes cobradas ou executadas por meio de ação judicial específica, após o que será expedido precatório, com a inclusão da despesa respectiva em outro código de especificação(6) . Se o precatório não for pago espontaneamente, nem houver alocação orçamentária de valor suficiente à satisfação do débito, poderá então, mas somente então, haver sequestro de receita (7) .

Porém, as ordens de sequestros são cumpridas sem que haja qualquer mecanismo de discriminação das quantias sequestradas nas contas bancárias da Administração Pública em função de sua procedência, pouco importando se essas quantias são provenientes de pagamento de tributos, de transferências voluntárias efetuadas por outros entes da federação, de operação de crédito, de alienação de bens, etc.

II.3 – A propósito disso, chega a ser irônico o fato de que recursos financeiros públicos, quando são transferidos a pessoas jurídicas de direito privado como subvenção social, ficam a salvo de penhora(8) , mas quando esses mesmos recursos encontram-se em poder da própria Administração Pública, nada impede que sejam objeto de sequestro para pagamento de precatórios. É verdade que o sequestro de receita e a penhora são atos judiciais com naturezas distintas, a começar pela circunstância de que estão inseridos em diferentes espécies de processos judiciais de execução, o primeiro contra a Fazenda Pública, e o segundo contra o devedor solvente cujos bens possam ser expropriados. Contudo, ambos possuem efeitos materiais e econômicos equivalentes, que consistem na constrição forçada de ativos financeiros(9) . Portanto, se a lei considera que os recursos públicos destinados a determinados fins sociais devam estar protegidos da execução forçada quando em poder de instituições privadas, com muito maior razão deveria também protegê-los quando estiverem em poder da própria Fazenda Pública.

II.4 – A fixação de um limite proporcional à receita corrente líquida para a despesa com o pagamento de precatórios já vencidos e ainda não quitados é algo que fragiliza a EC 62/2009, já que é forte o argumento de que tal iniciativa fere a coisa julgada e a segurança jurídica dos credores de precatórios constituídos anteriormente à instituição desse novo regime jurídico.

Esse é um dos fundamentos em razão dos quais o Supremo Tribunal Federal, nas sessões de 13 e 14 de março de 2013, declarou a inconstitucionalidade do art. 97 do ADCT no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 4357 e 4425-DF .(10)

Porém, dificilmente se poderia alegar a inconstitucionalidade desse mecanismo, se ele fosse instituído para aplicação exclusivamente aos precatórios futuros, expedidos posteriormente à entrada em vigor da emenda constitucional ainda que provenientes de ações ajuizadas anteriormente, ou mesmo para precatórios provenientes de ações ajuizadas apenas depois da entrada em vigor da emenda constitucional.

Importante distinguir com clareza os dois aspectos temporais desse mesmo problema:

II.5 – O problema presente, dependendo de como vier a ser feita a modulação dos efeitos da decisão do STF nas ADIn’s 4357 e 4425, talvez possa ser resolvido por meio de um dos poucos dispositivos inseridos pela EC 62/2009 e que não foi alvo da declaração de inconstitucionalidade: o § 16 do art. 100 das disposições permanentes, segundo o qual “A seu critério exclusivo e na forma de lei, a União poderá assumir débitos, oriundos de precatórios, de Estados, Distrito Federal e Municípios, refinanciando-os diretamente”.

O valor histórico nacional de precatórios abrangendo Estados, Municípios, autarquias e administração indireta era de R$ 87.570.492.923,93 (oitenta e sete bilhões, quinhentos e setenta milhões, quatrocentos e noventa e dois mil e novecentos e vinte e três reais e noventa e três centavos)(11)até julho de 2012.

No próprio ano de 2012 foi de R$ 2.150.458.867.507,00 (dois trilhões, cento e cinquenta bilhões, quatrocentos e cinquenta e oito milhões, oitocentos e sessenta e sete mil e quinhentos e sete reais) o orçamento da União(12) , e de R$ 616.933.300.000,00 (seiscentos e dezesseis bilhões, novecentos e trinta e três milhões e trezentos mil reais) (14) .

Apenas para efeito de comparação, é oportuno observar que o valor histórico nacional de precatórios correspondeu naquele momento portanto a 14,19% (quatorze vírgula dezenove por cento) da receita corrente líquida da União. Logo, mesmo considerando que a relação proporcional entre o estoque da dívida e a RCL pode sofrer variações mensais na medida em que varia a própria RCL acumulada nos doze meses antecedentes, se a União assumisse a totalidade dos débitos estaduais e municipais de precatórios, e efetuasse, para seu pagamento, uma despesa anual de pelo menos 2,0% (dois por cento) – prevista para os Estados das Regiões Sul e Sudeste cuja dívida total de precatórios for superior a 35% (trinta e cinco por cento) de sua RCL (15)–, então a dívida total poderia em tese ser quitada num prazo aproximado de sete anos, menos da metade do prazo de quinze anos previsto originalmente num dos dois novos regimes do art. 97 do ADCT.

II.6 – Se esses dados estiverem corretos, eles por si só já demonstram a maior conveniência dessa medida, na qual a União assumiria a dívida perante os credores de precatórios com uma estimativa de prazo para quitação muito menor – e quanto menor esse prazo, maior seria a chance de tolerância dos credores para com um novo regime de pagamento – e tornar-se-ia ela credora dos Estados e Municípios, com possibilidade de refinanciamento dessa dívida de um modo que fosse mais facilmente administrável por eles, com prazos longos para amortização do débito, taxas de juros menores que aquelas incidentes nos precatórios provenientes de desapropriações, etc.

II.7 – Quanto à possibilidade de um problema futuro, talvez se tenha perdido uma grande oportunidade para prevenir problema igual ao que se está vivendo hoje, e inserir na CF um mecanismo mais racional de gestão da dívida com precatórios. Possivelmente se o condicionamento do valor da despesa com precatórios à RCL tivesse sido instituído em caráter permanente somente para precatórios futuros, seria menor o interesse para eventual questionamento judicial de sua constitucionalidade, ou pelo menos maior a probabilidade de tal questionamento ser rejeitado pela maioria dos membros do Supremo Tribunal Federal.

Nessa hipótese, de uma norma que estabelecesse a vinculação entre despesa com precatórios e RCL e fosse aplicável somente a precatórios futuros, poderia haver a previsão de um prazo máximo – digamos, três anos – para que cada precatório fosse quitado ainda que o estoque total da dívida continuasse ultrapassando o percentual limite da RCL. Nesse cenário, o valor que excedesse o percentual da RCL e fosse necessário à quitação de precatórios com mais de três anos de espera, seria transferido da União Federal à entidade devedora (Estado, DF ou Município) mediante solicitação desta última, com posterior compensação das transferências compulsórias de impostos federais previstas constitucionalmente. E se o valor da transferência feita pela União para quitação da dívida estadual ou municipal fosse também superior a determinado limite, seria deflagrada automaticamente auditoria pelos tribunais de contas para verificação das razões de condenações judiciais com valores tão elevados, se provenientes apenas de circunstâncias fortuitas ou de má gestão pelo administrador público.

III – PROBLEMAS DECORRENTES DA DÚVIDA SOBRE O VALOR DO SALDO ATUAL DOS PRECATÓRIOS PENDENTES DE PAGAMENTO

A execução contra a Fazenda Pública é tema sobre o qual a legislação processual civil é muito lacônica, restringindo-se aos arts. 730 e 731 do Código de Processo Civil, que praticamente reproduzem o que está dito em parte do art. 100 da CF a respeito da necessidade de pagamento dos precatórios mediante uma ordem cronológica de apresentação, sob pena de sequestro se houver preterição no direito de precedência, desde que a entidade devedora tenha sido previamente citada para oposição de embargos à execução.

Uma vez expedido o precatório, quase nada mais é dito a respeito do assunto, possivelmente em razão do entendimento de que, depois da expedição do precatório, a matéria jurídica passa a ser de direito administrativo e não mais de direito processual civil.

Mas goste-se ou não, a realidade é que grande parte dos precatórios devidos por Estados e Municípios não foi quitada dentro do prazo de vencimento, surgindo daí enorme controvérsia a respeito dos valores agora devidos. Como toda controvérsia jurídica, também essa necessita de normas claras e objetivas, tanto materiais quanto processuais, que orientem o modo como deva ser decidida.

III.1 – CRITÉRIOS CONTROVERTIDOS SOBRE CÔMPUTO DE JUROS E DE CORREÇÃO MONETÁRIA

Algumas das poucas disposições existentes, aplicáveis à fase processual posterior à expedição do precatório, estão na Lei 9.494, de 10/09/1997, que estabelece o poder revisional do Presidente do tribunal relativamente aos cálculos de atualização dos precatórios antes de seu pagamento(16) , e os critérios de juros e correção monetária aplicáveis aos débitos da Fazenda Pública, que deverão ser os mesmos aplicáveis à remuneração das cadernetas de poupança (17).

Para o assunto tratado neste tópico, o que interessa são os critérios de juros e correção aplicáveis aos débitos da Fazenda Pública. Além desses critérios, existem outros que são provenientes de jurisprudência dos tribunais superiores, Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça.

Os critérios de cálculo e as controvérsias a seu respeito são basicamente os seguintes:

III.1.1 – Substituição do IPC de 70,28% aplicável ao mês de janeiro de 1989

Em 13/08/2001 o STJ publicou a Súmula 252, consolidando o entendimento de que a inflação do mês de janeiro de 1989 não foi de 70,28% como originalmente divulgado, mas inferior, de 42,72%.

Contudo, o próprio STJ possui também jurisprudência segundo a qual o Presidente do Tribunal, no exercício de sua função revisional de cálculo de precatórios, não pode alterar o índice, já que a eventual determinação, na sentença condenatória, de aplicação do índice de 70,28% conforme entendimento jurisprudencial que vigorava anteriormente à referida Súmula 252, não caracteriza erro de cálculo que possa ser retificado a qualquer tempo com fundamento no art. 463 do Código de Processo Civil(18).

Apesar disso, o Tribunal de Justiça de São Paulo, em processos administrativos de sequestro, às vezes determina a substituição dos índices no julgamento de agravos regimentais do próprio Ministério Público (19).

III.1.2 – Correção e juros nos mesmos índices válidos para a remuneração da caderneta de poupança, ou seja, variação da TR (taxa referencial) e juros de no máximo 0,5% ao mês (6,0% ao ano) (20)

Correção monetária e juros nos mesmos índices válidos para a caderneta de poupança foram declarados inconstitucionais pelo STF. Como já dito acima, o STF declarou a inconstitucionalidade de alguns dispositivos inseridos pela EC 62/2009, entre os quais o art. 100, § 12, das disposições permanentes e, por arrastamento, o art. 5º da Lei 11.960/2009.

No voto do ex-ministro Carlos Ayres Britto, relator das ADIn’s 4357 e 4425-DF, ele relembra – reportando-se à anterior decisão do próprio STF no julgamento da ADIn 493 – que o índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança não reflete a perda de poder aquisitivo da moeda, não servindo portanto como índice de correção monetária dos débitos de precatórios(21) .

Porém, na questão referente aos juros, parece ter prevalecido o entendimento de que a taxa de no máximo 0,5% ao mês (6,0% ao ano) é válida para incidir em todos os precatórios com exceção daqueles provenientes de ações de repetição de indébito tributário, aos quais, por uma questão de isonomia, deve aplicar-se exatamente a mesma taxa de juros incidente sobre o crédito tributário, que em regra é de 1,0% ao mês (12,0% ao ano) tanto no pagamento quanto na restituição, conforme previsto no art. 161 § 1º e no art. 167, ambos do Código Tributário Nacional (22). Embora ressalvando seu entendimento pessoal de que seria inconstitucional uma taxa de juros para o débito público menor que a do débito privado(23), o relator observou que a questão já estava superada, uma vez que o STF já havia decidido no passado, por maioria de votos, que era constitucional a aplicação dessa taxa de juros. Referida decisão foi proferida no julgamento do RE 453.740, em cujo julgamento foi declarada a constitucionalidade do art. 1ºF da Lei 9494/1997 com sua redação original, proveniente da Medida Provisória 2180-35 de 2001, que fazia referência apenas aos débitos da Fazenda Pública para com servidores públicos, e não a todos os débitos independentemente de sua natureza.

O Superior Tribunal de Justiça, que já havia decidido pela aplicação imediata do art. 1ºF da Lei 9494/1997 mesmo aos processos iniciados anteriormente à entrada em vigor da Lei 11.960/2009, proferiu nova decisão após tomar conhecimento do voto do ex-ministro Ayres Britto na ADIn 4357-DF. Nesse novo julgamento, foi mantida a taxa de juros de 0,5% ao mês para os débitos de natureza não-tributária, mas com imediata substituição da TR pelo IPCA como índice de correção monetária(25).

III.1.3 – Interrupção dos juros de mora no período mínimo de 540 dias compreendido entre 1º de julho de um exercício financeiro e o dia 31 de dezembro do exercício financeiro seguinte

A Constituição Federal diz literalmente no § 5º de seu art. 100 que “É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos, oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente”.

Nesse período não incidem juros de mora(26), conforme entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal já consolidado por meio de sua Súmula Vinculante nº 17, segundo a qual: “durante o período previsto no parágrafo 1º do artigo 100 da Constituição, não incidem juros de mora sobre os precatórios que nele sejam pagos” (27).

Ao excluir tacitamente do verbete os precatórios que não tenham sido pagos no período, o STF não pretendeu dizer que na hipótese de inadimplência a incidência dos juros retroage ao período de inclusão do precatório na proposta orçamentária; ele pretendeu apenas dizer que a hipótese de inadimplência ainda não havia sido suficientemente analisada pelo STF(28) , o que leva à presunção de que futuramente, após reiteradas decisões sobre a matéria, ela possa vir a ser objeto de uma outra súmula vinculante.

Quanto ao Superior Tribunal de Justiça, existem julgados nos quais está dito expressamente que na hipótese de inadimplência os juros de mora voltam a incidir mas não retroativamente, e sim apenas a partir da data do vencimento(29) . No julgamento do REsp 1.143.677 (relator ex-min. Luiz Fux, Corte Especial, DJe 04/02/2010), o tribunal firmou a orientação segundo a qual não incidem juros de mora no período entre a conta de atualização e o efetivo pagamento do precatório. No entanto, em alguns outros julgamentos o tribunal parece ter flexibilizado o entendimento, no sentido de que o enunciado não se aplica aos casos em que exista sentença com trânsito em julgado com previsão expressa sobre a incidência dos juros moratórios até o efetivo pagamento, a fim de evitar a violação do princípio da coisa julgada(30).

III.1.4 – Interrupção dos juros, inclusive compensatórios quando se tratar de débitos provenientes de ações de desapropriação, na data de promulgação da EC 30/2000, para os precatórios submetidos à respectiva moratória

A Constituição Federal instituiu já duas moratórias para pagamento do estoque da dívida de precatórios, uma em 05/10/1988 pelo prazo de oito anos a contar de 1º/07/1989 e outra em 13/09/2000 pelo prazo de dez anos. A propósito da moratória de oito anos instituída por meio do art. 33 do ADCT, o STF fixou o entendimento de que os juros compensatórios e moratórios deveriam ser interrompidos no início da moratória(31).

Posteriormente, fixou o mesmo entendimento relativamente à moratória de dez anos instituída por meio do art. 78 do ADCT (EC 30/2000), sendo que a decisão do Plenário foi proferida no julgamento do RE 590.751-SP (relator min. Ricardo Lewandowski; julgamento 09/12/2010; DJU 04/04/2011), na qual ficou vencido apenas o ministro Marco Aurélio. Mas também aqui parece haver controvérsia na hipótese de inadimplência por parte da Fazenda Pública: nessa hipótese os juros voltam a incidir apenas a partir do vencimento de cada uma das parcelas anuais da moratória ou podem incidir retroativamente, desde a data de início da moratória? E, para os precatórios provenientes de ações de desapropriação, os juros que voltam a incidir são apenas os juros de mora ou também os juros compensatórios?

Em alguns processos julgados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, decidiu-se que, na hipótese de inadimplência, o precatório fica excluído do regime instituído pelo art. 78 do ADCT sob o argumento de que, se não houve pagamento espontâneo por parte do devedor, então os efeitos da moratória que lhe seriam benéficos, inclusive a interrupção dos juros, devem deixar de ser aplicados(32). Mas esse argumento é frágil, até porque a moratória do art. 78 do ADCT em nenhum momento fica condicionada à escolha do Poder Executivo de cada entidade devedora, ao contrário do que ocorreu com a moratória do art. 33 do ADCT, em cujo caput estava dito expressamente que os precatórios poderiam ser pagos em prestações anuais “... por decisão editada pelo Poder Executivo até cento e oitenta dias da edição da promulgação da Constituição”.

Além disso, esse não é o entendimento já explicitado pelo Supremo Tribunal Federal, que há muito tempo parece ter pacificado a interpretação de que, mesmo na hipótese de inadimplência, os juros compensatórios não voltam mais a incidir, apenas incidem os juros moratórios a partir do vencimento. Os precedentes referem-se à moratória do art. 33 do ADCT, mas o raciocínio pode ser aplicado sem ressalvas à moratória do art. 78 do ADCT, já que ambos possuem a mesma mens legis(33).

Contudo, não se pode perder de vista também a circunstância de que o art. 2º da EC 30/2000, por meio da qual foi inserido no ADCT o art. 78, concessivo da moratória, está com sua eficácia suspensa por decisão cautelar do próprio STF proferida nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 2356 e 2362-DF (Publicação DJ-e em 19/05/2011). A suspensão da eficácia do art. 2º da EC 30/2000 gera reflexos imediatos na possibilidade de sequestro de receita prevista no art. 78, § 4º, do ADCT. Em razão da suspensão do fundamento jurídico de ordens de sequestro(34), o STF tem concedido liminares em reclamações para suspender os respectivos processos de sequestro ou mesmo os acórdãos concessivos de mandados de segurança contra atos do Presidente do TJSP, quando este decidiu de ofício extinguir processos de sequestro. Mas no futuro, quando vier a ser julgado o mérito das ADIn’s 2356 e 2362-DF, poderá também, dependendo de qual vier a ser a decisão, se refletir no período de cômputo dos juros.

III.1.5 – Para os débitos provenientes de ações de desapropriação: aplicação da taxa de juros compensatórios de 6,0% ao ano no período compreendido entre 11/06/1997 e 13/09/2001

A taxa de juros compensatórios não tinha, originalmente, um dispositivo legal que a estabelecesse nominalmente. A jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal Federal se consolidou então no sentido de que referida taxa deveria ser de 12% ao ano, expressamente mencionada na Súmula 618, editada em 1984. Tempos depois foi editada a Medida Provisória 1577, de 11/06/1997, cujo art. 3º dispunha expressamente que a taxa de juros compensatórios deveria ser de 6% ao ano. Referido comando normativo foi mantido em vigor por meio de sucessivas medidas provisórias que o reeditavam com pequenas alterações de forma antes que a medida imediatamente precedente perdesse a eficácia. A medida provisória mais recente com tal conteúdo – fixação nominal da taxa de juros compensatórios em 6% ao ano – foi a Medida Provisória 2183-56, de 24/08/2001, que inseriu o art. 15-A no Decreto-Lei 3365, de 21/06/1941.

A MP 2183-56/2001, se encontrava dentro de seu período de eficácia (35) quando foi promulgada, em 11/09/2001, a Emenda Constitucional 32, estipulando nova disciplina para aquele instrumento legislativo e cujo art. 2º concedeu eficácia permanente às medidas provisórias que estivessem então em vigor(36).

O novo dispositivo legal introduzido pela MP 2183-56/2001 – art. 15-A do DL 3365/1941 – foi então alvo da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2332-DF, sob relatoria originalmente do ex-ministro Moreira Alves que, na sessão de 05/09/2001, deferiu medida liminar para suspender a eficácia da expressão “... de até 6% ao ano ...” (37) e, desse modo, restabelecer a plena aplicabilidade da já mencionada Súmula 618(38) .

Prevalecendo a regra da eficácia não retroativa da medida cautelar concedida em ação direta de inconstitucionalidade(39), então a taxa de 6% ao ano para os juros compensatórios poderia continuar sendo aplicada no período anterior à data na qual o STF suspendeu sua eficácia. Esse foi o entendimento a que chegou o Superior Tribunal de Justiça e que se consolidou por meio de sua Súmula 408, publicada em 24/11/2009 e que continua sendo aplicada(40).

Contudo, apesar de não ter sido ressalvada eficácia retroativa da cautelar concedida em controle concentrado de constitucionalidade na referida ADIn 2332-DF, o próprio STF, no exercício do controle difuso de constitucionalidade, tem recusado aplicação da taxa de juros compensatórios prevista no art. 15-A do DL 3365/1941, mandando aplicar sempre a de 12% ao ano prevista na sua Súmula 618(41).

III.2 – A NECESSIDADE DE CONDICIONAR A MODULAÇÃO DOS EFEITOS DO ACÓRDÃO NAS ADIN’S 4425 E 4357 À DECISÃO DEFINITIVA A SER PROFERIDA NO JULGAMENTO DAS ADIN’S 2356 E 2362

III.2.1 – Embora as ADIn’s 4425 e 4357, que atacam a EC 62/2009, só tenham sido ajuizadas no final de 2009, foram julgadas já em 2013, ao passo que as ADIn’s 2356 e 2362, que atacam a EC 30/2000, apesar de ajuizadas quase uma década antes até o presente momento não foram julgadas quanto ao mérito, havendo apenas a decisão cautelar publicada em maio de 2011.

Na medida em que as duas emendas tiveram por objeto a instituição de disciplinas transitórias para uma mesma matéria, precatórios, e considerando que a principal razão de ser da EC 62/2009 foi a insuficiência da emenda anterior, EC 30/2000, como solução definitiva para o mesmo problema, então nada mais razoável que tivessem sido julgadas de modo simultâneo, principalmente se se levar em consideração a circunstância de que o julgamento das ADIn’s 4425 e 4357 está na fase de modulação de efeitos.

III.2.2 – Caso não se obtenha a maioria de dois terços necessária para a modulação de efeitos prevista no art. 27 da Lei 9868/1999(42), e caso não haja a vontade política de assunção das dívidas pela União Federal tal como prevista no art. 100 § 16 da CF, então todas as entidades devedoras deverão promover a alocação orçamentária do valor equivalente ao estoque de suas dívidas para quitação num único exercício financeiro, sob pena de sequestro de receita conforme disposto no art. 100 § 6º da CF que, embora inserido pela EC 62/2009, não foi abrangido pela decisão de inconstitucionalidade.

Ora, se durante a moratória de dez anos prevista no art. 78 do ADCT, várias entidades devedoras não conseguiram nem mesmo promover a alocação orçamentária do valor equivalente apenas à décima parte de cada um de seus débitos, então como se pode pretender que elas consigam agora promover a alocação orçamentária do valor equivalente a todo o estoque das respectivas dívidas, principalmente considerando que o estoque cresce anualmente à medida que novos precatórios são recebidos? Tal expectativa não é realista, já que para muitas entidades o valor total da dívida é grande demais comparativamente ao orçamento de um ano.

III.2.3 – A própria definição do valor total do estoque da dívida de cada Fazenda Pública sofre variações em função dos critérios de cálculo já mencionados no tópico anterior. Por exemplo: caso se entenda que os juros compensatórios e moratórios devem ser interrompidos no período da moratória do art. 78 do ADCT, com possibilidade de reincidência apenas dos juros moratórios após o vencimento de cada parcela, então o valor do estoque da dívida será um; mas caso se entenda que os juros não podem ser interrompidos – já que a eficácia do próprio art. 78 do ADCT está suspensa, com razoável probabilidade de ser declarado inconstitucional no julgamento de mérito das ADIn’s 2356 e 2362 – , então o valor do estoque da dívida será muito maior(43) .

O valor nominal mencionado no relatório do CNJ – ao qual fizemos referência e segundo o qual o estoque total da dívida com precatórios até julho de 2012 era de R$ 87.570.492.923,93 –, também poderá sofrer alterações em função da decisão que vier a ser proferida no julgamento das ADIn’s 2356 e 2362 pois, salvo engano, o relatório não diz como os juros foram calculados e nem poderia, já que em muitos processos a discussão sobre essa questão específica ainda está em andamento, sem decisão final.

III.2.4 – Como se vê, a definição do momento a partir do qual terá validade a declaração de inconstitucionalidade do art. 97 do ADCT, a ser feita na modulação dos efeitos do acórdão nas ADIn’s 4357 e 4425, e portanto o tempo restante que as entidades devedoras possuem para a quitação de sua dívida de precatórios por meio dos novos regimes, depende de uma decisão definitiva a ser proferida nas ADIn’s 2356 e 2362 e que diga se os juros compensatórios e moratórios deverão ou não permanecer interrompidos do período da moratória do art. 78 do ADCT.

III.3 – NECESSIDADE DE UMA LEGISLAÇÃO SOBRE EXECUÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA

III.3.1 – Como já se viu nos tópicos anteriores, as controvérsias sobre o modo como devem ser calculados os saldos atualizados dos precatórios, particularmente no que diz respeito à incidência ou não de juros em determinados períodos produzem inúmeros litígios. A litigiosidade da matéria tende a ficar ainda mais complexa porque não se limita apenas às questões de mérito, abrangendo também questões de natureza processual.

É notório o entendimento dos tribunais superiores de que a fase de execução de precatórios constitui matéria de direito administrativo, e não de direito processual civil, entendimento esse já consolidado por meio da Súmula 733 do STF e da Súmula 311 do STJ. Dos precedentes invocados como origem da Súmula 733 do STF, o primeiro é aquele proveniente da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1098-SP (relator min. Marco Aurélio, publ. DJ 23/10/1996), em cujo acórdão se faz referência, por meio do voto do min. Celso de Mello, a precedentes ainda mais antigos(44) .

III.3.2 – A referida ADIn 1098-SP tinha por objeto vários dispositivos do antigo Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo revogado em 2009, entre os quais o art. 337, inciso VII, que permitia ao Presidente do Tribunal requisitar da entidade devedora, no prazo de noventa dias, a complementação de precatórios cujo pagamento tivesse sido insuficiente para sua quitação.

Neste tópico, a ação foi julgada procedente em parte, para determinar interpretação segundo a qual tal espécie de requisição não poderia ser feita com utilização de índice de atualização diferente daquele estabelecido no título executivo judicial, exceto na hipótese de substituição do índice em virtude do advento de nova lei que tenha declarado a extinção do índice mencionado na sentença de liquidação.

III.3.3 – A expressão “índice de atualização” pode induzir à conclusão de que se esteja fazendo referência apenas à correção monetária mas não também aos juros. Mas caso se esteja fazendo referência também aos juros, então não se poderia admitir em princípio a exclusão da incidência de juros em determinados períodos dentro do intervalo de tempo compreendido entre a data de homologação do cálculo que deu origem ao precatório e a data do pagamento. As sentenças condenatórias de obrigação de pagar, via de regra, estabelecem de modo expresso a taxa de juros e seu termo inicial, deixando implícito que seu termo final é a data do efetivo pagamento com fluência, portanto, ininterrupta.

Todavia, como vimos, o próprio STF firmou jurisprudência admitindo a interrupção da incidência de juros em períodos específicos e posteriores à conta de liquidação e à expedição do precatório, segundo consta na Súmula Vinculante 17 e no acórdão do RE 590.751-SP, já mencionados.

III.3.4 – Oportuno lembrar que a ADIn 1098-SP foi julgada anteriormente ao advento da EC 30/2000, quando então a hipótese de sequestro de receita era prevista apenas para a hipótese, não tão frequente, de preterimento do direito de precedência do credor. Com a EC 30/2000, surgiu prevista no art. 78 § 4º do ADCT, a hipótese de sequestro, mais frequente, por inadimplência no pagamento das prestações anuais do precatório não alimentar sujeito à moratória de dez anos.

Contudo, a incerteza quanto aos limites do poder administrativo atribuído aos Presidentes dos Tribunais para determinar o sequestro de receita e para fazer a revisão das contas originais dos precatórios, previsto no art. 1ºE da Lei 9494, de 10/09/1997, acarreta dúvidas sobre a possibilidade ou não de – no cálculo de atualização do saldo do precatório para efeito de sequestro – ser determinada por ele a exclusão dos juros nos períodos já mencionados. No âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, a questão dividiu os desembargadores do Órgão Especial, competentes para o julgamento de mandados de segurança contra atos de seu presidente. Afinal, apesar da jurisprudência do STF mencionada acima e apesar do poder revisional previsto no art. 1ºE da Lei 9494/1997, os tribunais têm entendido que somente o juiz da execução é que pode decidir, n o caso concreto, se a jurisprudência deve ou não ser aplicada e se os juros devem ou não ser interrompidos pois, de acordo com a lei – art. 575 inciso II do CPC e art. 877 da CLT –, a execução deve ser processada perante o juiz que decidiu a causa em primeiro grau de jurisdição.

III.3.5 – Desse modo, o processo de execução forçada de precatórios torna-se muito complexo, com litígios de natureza administrativa nos quais discute-se a possibilidade ou não de interrupção dos juros, mas cujas decisões, exatamente por sua natureza administrativa, não são vinculantes para o juízo da execução, perante o qual o litígio pode recomeçar do zero a despeito das decisões administrativas anteriores.

Esse problema produz situações paradoxais, como por exemplo a hipótese de um mesmo precatório sujeito a critérios de atualização absolutamente divergentes dependendo do modo como tenha sido paga cada parcela do precatório. Tome-se como exemplo um precatório que tenha sido abrangido pela moratória do ano 2000, cujas cinco primeiras parcelas de dez tenham sido objeto de sequestro, com fundamento no art. 78 do ADCT e sem interrupção de juros, e as cinco últimas parcelas tenham sido pagas com a remessa de recursos financeiros conforme regime do art. 97 do ADCT mas com interrupção dos juros naqueles períodos já mencionados. Se a inclusão dos juros nas cinco primeiras parcelas for considerada indevida, então terá havido prejuízo para o devedor e o excesso de execução deveria ser compensado com o saldo devedor das cinco parcelas finais. Se, por outro lado, a exclusão dos juros nas cinco últimas parcelas é que for considerada indevida – por peculiaridades específicas de cada processo –, então terá havido prejuízo para o credor e a execução delas deveria prosseguir.

Mas as decisões do juiz da execução proferidas ao longo da execução – exceto a decisão que a extingue, sentença (por expressa disposição do art. 795 do CPC), sujeita portanto a recurso de apelação – são apenas decisões interlocutórias, que só podem ser atacadas por meio de agravos de instrumento e nos quais a matéria é debatida sempre de modo mais precário.

III.3.6 – É perfeitamente compreensível a participação do Presidente do Tribunal na fase de requisição dos precatórios, já que a possibilidade de vários precatórios devidos por uma só entidade mas provenientes de processos de diferentes varas de uma mesma comarca acarreta a necessidade de centralização do controle dos precatórios, até mesmo para efeito de definição da ordem cronológica.

Mas isso não impede que sejam estabelecidas de modo claro e objetivo normas de processo ou de procedimento definindo os limites das atribuições de cada autoridade judiciária – juiz da execução e Presidente do Tribunal – e o momento para a prática de cada ato.

III.3.7 – A jurisprudência que concluiu pela natureza administrativa do precatório é de um tempo em que a possível inadimplência da Fazenda Pública suscitava problemas muitíssimo menos complexos do que os de hoje.

O direito positivo é um objeto cultural que deve espelhar a realidade em que está inserido, já que sua finalidade é dirimir de modo satisfatório conflitos de interesse concretos. Portanto, ele deve mudar na medida em que muda a própria realidade. Assim, com ou sem a mudança da jurisprudência que concluiu pela natureza administrativa do precatório, faz-se necessária a edição de uma legislação processual apta a suprir as lacunas atuais, permitindo que a fase de execução de precatórios ocorra com a maior celeridade possível e, principalmente, com a maior clareza possível, com o maior número possível de decisões sob responsabilidade do próprio juiz da execução, sujeitas obviamente ao duplo grau de jurisdição.

Que conteúdo se poderia esperar dessa futura e hipotética legislação é algo que compete aos especialistas na matéria propor e ao Congresso Nacional decidir. Obviamente não há espaço nem é oportuno especular a respeito disso aqui. De nossa parte, nos pareceu necessário – repetindo aqui o que já foi dito na introdução do presente trabalho – chamar a atenção para a insuficiência da legislação atual como ferramenta para o enfrentamento do problema.

IV – CONCLUSÃO

Dificilmente se pode apresentar ou sugerir uma conclusão definitiva sobre a matéria, já que alguns de seus mais importantes aspectos serão definidos no futuro próximo, com a conclusão dos julgamentos, pelo Supremo Tribunal Federal, das ações diretas de inconstitucionalidade mencionadas acima.

Ainda assim, parece-nos conveniente pontuar três parâmetros para que se possa reduzir um pouco o grau de insegurança jurídica que atualmente perturba credores e devedores de precatórios:


*PEDRO TAVARES MALUF é advogado, mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, procurador municipal de carreira e sócio de Processo & Decisão Consultoria


, antes, portanto, da sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) realizada em 25 de março de 2015, por meio da qual foi feita a modulação dos efeitos da decisão proferida no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade números 4357 e 4425.

(1) - Art. 78 do mesmo ADCT, inserido pela Emenda Constitucional 30, de 13 de setembro de 2000.

(2) - Art. 97 também do ADCT, inserido pela Emenda Constitucional 62, de 9 de dezembro de 2009.

(3) -O art. 97 § 2º do ADCT diz que “Para saldar os precatórios, vencidos e a vencer, pelo regime especial, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devedores depositarão mensalmente, em conta especial criada para tal fim, 1/12 (um doze avos) do valor calculado percentualmente sobre as respectivas receitas correntes líquidas, apuradas no segundo mês anterior ao mês de pagamento, sendo que esse percentual, calculado no momento de opção pelo regime e mantido fixo até o final do prazo a que se refere o § 14 deste artigo, será ...” de no mínimo 1% até 2%, conforme os critérios estipulados nos dois incisos do § 2º.

(4) - O art. 4º da EC 62/2009, combinado com o art. 97 §§ 1º e 14 do ADCT, prevê o prazo de quinze anos para os devedores que tiverem adotado o regime de contribuição anual (previsto no inciso I do art. 97), e um prazo indeterminado para os que tiverem adotado o regime de contribuição mensal (previsto no inciso II do art. 97), ficando a permanência no novo regime, nessa hipótese, condicionada à redução do estoque da dívida para um valor inferior ao dos recursos destinados ao seu pagamento, ou seja, um valor inferior àquele percentual calculado sobre a RCL. A propósito disso, é oportuno observar que a Resolução 115 do CNJ, de 29/06/2010, alterada pela Resolução 123, estabelece por meio de seu art. 20, § 2º, uma metodologia para calcular o valor do percentual mínimo de contribuição mensal necessário para a quitação do estoque de dívida no prazo máximo de quinze anos, mesmo para os devedores que tiverem optado pelo regime previsto no inciso I do art. 97, no qual o prazo é indeterminado.

(5) - No caso dos Municípios, 40% da receita de impostos ficam condicionados a despesas específicas, já que 25% destinam-se à manutenção e ao desenvolvimento do ensino (art. 212 da CF) e 15% destinam-se às ações e aos serviços públicos de saúde (art. 198, §§ 2º e 3º, da CF c/c art. 7º da Lei Complementar 141, de 13/01/2012).

(6) - Se, por exemplo, a Administração deixa de pagar a seus servidores uma determinada verba que deveria integrar seus vencimentos – pagamento esse que, se fosse efetuado espontaneamente, seria classificado como despesas de custeio com pessoal civil (art. 13 da Lei 4.320, de 17/03/1964) –, então para que ela seja compelida a pagá-los os servidores terão o ônus de ingressar com ações judiciais e, somente depois do trânsito em julgado de possível sentença condenatória, o pagamento será então efetuado, classificado como diversas despesas de custeio.

(7) - A previsão de sequestro na hipótese de não alocação orçamentária está contida no art. 100, § 6º, da CF, incluído pela EC 62/2009. No texto original da CF, o sequestro era previsto apenas na hipótese de preterimento do direito de precedência (a chamada “quebra de ordem cronológica de pagamento dos precatórios”) e, após o advento da EC 30/2000, passou a ser previsto no art. 78, § 4º, do ADCT, para a hipótese de inadimplemento no pagamento das parcelas anuais da moratória de dez anos então concedida. Finalmente, a EC 62/2009 inseriu novas hipóteses de sequestro, a já mencionada hipótese de insuficiência de alocação orçamentária, e a hipótese – prevista no art. 97, § 10, inciso I, do ADCT – de não liberação dos recursos financeiros necessários ao pagamento do estoque de precatórios calculado proporcionalmente à receita corrente líquida.

(8) - O art. 649, inciso IX, do Código de Processo Civil (incluído pela Lei 11.382, de 06/12/2006) diz que “São absolutamente impenhoráveis os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social”.

(9) -Tanto é assim que o bloqueio eletrônico de ativos financeiros por intermédio de requisição à autoridade supervisora do sistema bancário, embora esteja previsto no art. 655-A do CPC exclusivamente para a hipótese de penhora, tem sido utilizado na prática também para a hipótese de sequestro de receita.

(10) - No momento em que escrevo o presente artigo, maio de 2014, embora tenha sido publicado o acórdão de julgamento das ADIn’s 4357 e 4425-DF (disponibilizado no Diário de Justiça eletrônico no dia 19/12/2013), a decisão respectiva ainda não é suficiente, uma vez que o STF está definindo a modulação de seus efeitos, tal como previsto no art. 27 da Lei 9868, de 10/11/1999.

(11) - Dados obtidos no Relatório Precatórios – Reestruturação da Gestão nos Tribunais elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça e disponível no sítio do órgão na internet www.cnj.jus.br.

(12) - Aprovado pela Lei 12.595, de 19 de janeiro de 2012.

(13) - Dado obtido no Relatório e parecer prévio sobre as contas do governo da República para o exercício de 2012 apresentado pelo Tribunal de Contas da União, pág. 181, na qual consta o referido valor de R$ 616.933.300.000,00 obtido a partir das deduções de R$ 517.784.000.000,00 sobre as receitas correntes no montante de R$ 1.134.717.300.000,00 (portal2.tcu.gov.br).

(14) -Conforme definição contida no art. 2º da Lei Complementar 101, de 04/05/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), a RCL corresponde à diferença entre a somatória das receitas correntes e um conjunto de deduções que abrange as contribuições dos servidores para o custeio de seu sistema previdenciário e as receitas provenientes da compensação financeira entre os diferentes sistemas previdenciários (prevista no art. 201, § 9º, da CF), além de, no caso da União e dos Estados, as parcelas dos tributos de sua competência transferidos compulsoriamente por determinação constitucional aos Estados e aos Municípios e, no caso específico da União, as contribuições para o PIS e o PASEP (previstas no art. 239 da CF) e as contribuições do empregador e do trabalhador para o sistema de seguridade social (previstas no art. 195, incisos I e II, da CF).

(15) -15 - Art. 97, § 2º, inciso I, alínea “b”, do ADCT.

(16)- Art. 1ºE da Lei 9.494, de 10 de setembro de 1997.

(17) -O art. 1ºF da Lei 9.494/1997, com redação dada pela Lei 11.960, de 29 de junho de 2009, prevê a adoção desses critérios para a atualização do débito da Fazenda Pública, antes ainda da expedição do precatório. Esse comando é depois reproduzido pela já mencionada EC 62/2009, por meio da redação que deu ao art. 100, § 12, da CF, e ao art. 97, § 1º inciso II, e § 16, do ADCT, para aplicação aos precatórios, ou seja para atualização do débito no período compreendido entre a expedição do precatório e a data de seu efetivo pagamento.

(18) -AgRg-AI 283.212/MG (relator min. Franciulli Neto, 2ª Turma, DJ 03/11/2003); AgRg-RMS 29.245/SP (relator min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJe 29/06/2010); RMS 28.172/SP (relator min. Herman Benjamin, 2ª Turma, DJe 04/02/2011).

(19) - Agravo Regimental 9033780-31.2007.8.26.0000, relator desembargador Viana Santos, Órgão Especial, julgamento em 25/08/2010.

(20) -Art. 12 da Lei 8.177, de 1º de março de 1991, com redação dada pela Lei 12.703, de 7 de agosto de 2012.

(21) - No art. 27 da Lei 12.919, de 24/12/2013 (que dispõe sobre as diretrizes para elaboração e execução da lei orçamentária de 2014), está previsto que na atualização dos precatórios devidos pela União para o exercício de 2014 será observada a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E) do IBGE.

(22) - Ressalvando-se a possibilidade de aplicação da Taxa Selic, Sistema Especial de Liquidação e de Custódia, prevista expressamente para a repetição ou compensação de tributos federais nos arts. 16 e 39, § 4º, da Lei 9.250, de 26 de dezembro de 1995.

(23) - O débito privado fica sujeito à mesma taxa de juros aplicável aos impostos da Fazenda Nacional, por força do disposto no art. 406 do Código Civil de 2002.

(24) - REsp 1.205.946/SP, rel. min. Benedito Gonçalves, Corte Especial, DJe 02/02/2012, julgamento submetido ao rito de recurso especial representativo de controvérsia (art. 543-C do CPC e Resolução STJ nº 8/2008).

(25) - REsp 1.270.439-PR, rel. min. Castro Meira, Primeira Seção, DJe 02/08/2013, julgamento submetido ao rito de recurso especial representativo de controvérsia (art. 543-C do CPC e Resolução STJ nº 8/2008). A decisão de substituir imediatamente o índice de correção monetária nos parece precipitada, já que o julgamento das ADIn’s 4425 e 4357 ainda não está concluído e nele foi proferida medida cautelar para determinar expressamente que os tribunais continuem aplicando as disposições da EC 62/2009. Tanto que o STF tem concedido liminares para suspender os efeitos de acórdãos que já estejam determinando a correção monetária de precatórios com outros índices que não a TR (Reclamação 16745-SC, relator ministro Teori Zavascki, decisão monocrática 13/11/2013, DJ-e 19/11/2013). Oportuno observar inclusive a interposição do recurso de embargos de declaração pela Advocacia Geral da União na ADIn 4425, alegando que a Lei 11960/2009 não poderia ser declarada inconstitucional por arrastamento, já que ela se aplica a uma fase processual anterior à formação do precatório (enquanto o art. 97 do ADCT aplica-se apenas aos precatórios que já estejam em fase de execução) e nas petições iniciais das ações diretas não se pede a declaração de inconstitucionalidade da referida lei.

(26) - A incidência de juros de mora no período imediatamente anterior, compreendido entre a data da conta de liquidação e a data de expedição da requisição de pequeno valor ou do precatório, é matéria cuja repercussão geral foi reconhecida em questão de ordem no RE 579.431-RS (DJe 24/10/2008, proposta da então presidente min. Ellen Gracie; relator atual o min. Marco Aurélio).

(27) - O § 1º do art. 100 da CF, mencionado expressamente na Súmula Vinculante 17, foi renumerado como § 5º pela EC 62/2009.

(28) - Isso fica evidente nas considerações feitas pelo ex-ministro Cezar Peluso, na sessão de debates a respeito da Proposta nº 32 de súmula vinculante, para justificar a redação sugerida por ele. No entanto, é oportuno observar que possivelmente para alguns ministros, seria lógica a conclusão de que, na hipótese de inadimplência, os juros de mora voltariam a incidir apenas a partir da data do vencimento, portanto sem possibilidade de incidência retroativa no período anterior, compreendido entre a data de apresentação do precatório e a data de vencimento. Isso se depreende das observações feitas pela ex-ministra Ellen Gracie na mesma sessão de debates

(29) - Num dos precedentes mais antigos, AgRg-REsp 510.205-MG (relator José Delgado; relator para o acórdão Teori Zavascki; julgamento 21/08/2003; DJU 06/10/2003), a decisão não poderia ser mais explícita, como se verifica nos termos da própria ementa: “(...) se a Fazenda não atende o prazo constitucional para o pagamento do precatório, configurar-se-á situação de mora, caso em que (a) são devidos juros de mora e (b) incidem sobre o período da mora, ou seja, a partir do dia seguinte ao do prazo constitucional do pagamento do precatório. Em outras palavras: não havendo pagamento do precatório até dezembro do ano seguinte ao da sua apresentação, passam, a partir de então (1º de janeiro subseqüente) a incidir juros de mora. (...)”

(30) - AgRg-REsp 1.257.457-RS (rel. Humberto Martins, 2ª Turma, DJe 13/02/2012).

(31) - RE 155.981-SP (relator min. Marco Aurélio, Pleno, DJ 23/02/2001).

(32) - Agravo de Instrumento 0084371-43.2013.8.26.0000, relator desembargador Leme de Campos, 6ª Câmara de Direito Público, julgamento em 05/08/2013.

(33) - RE 193.210/SP (relator min. Neri da Silveira; 2ª Turma; DJ 29/05/1998): “... o art. 33 do ADCT não autoriza o cômputo de juros moratórios e compensatórios, quanto a essas dívidas, após a promulgação da Constituição. Cumpre, entretanto, entender que juros moratórios, relativamente a cada parcela, são devidos, na hipótese de suceder inadimplência da Fazenda Pública, quanto ao respectivo pagamento, fluindo os juros moratórios a partir da data aprazada para a satisfação da parcela ...”; AI 494.526/SP ED-AgRg (relator min. Sepúlveda Pertence; 1ª Turma; DJ 20/10/2006): “... não são devidos juros compensatórios ainda que o pagamento do precatório tenha ocorrido a destempo”; AI 643.732-SP AgRg (relatora min. Carmem Lúcia; 1ª Turma; DJ 21/08/2009): “... são cabíveis juros moratórios apenas se houve atraso no pagamento”..

(34) - Rcl 14.431-SP (rel. Ricardo Lewandowski, DJe 19/10/2012), Rcl 14.858-AgR/SP (rel. Teori Zavascki, DJe 10/04/2013), Rcl 15.757-SP (rel. Carmem Lúcia, DJe 27/05/2013) e Rcl 16.151-SP (rel. Roberto Barroso, DJe 18/10/2013).

(35) - Atualmente, o prazo de eficácia das medidas provisórias é de sessenta dias, prorrogável uma única vez por igual período (art. 62, §§ 3º e 7º, da CF com redação dada pela EC 32/2001). Na data de publicação da MP 2183-56/2001, o prazo de eficácia das medidas provisórias era de trinta dias (art. 62, parágrafo único, da CF com sua redação original).

(36) - Art. 2º da EC 32/2001: “As medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional”.

(37) - O art. 15-A caput do DL 3365/1941 dispunha que “No caso de imissão prévia na posse, na desapropriação por necessidade ou utilidade pública e interesse social, inclusive para fins de reforma agrária, havendo divergência entre o preço ofertado em juízo e o valor do bem, fixado na sentença, expressos em termos reais, incidirão juros compensatórios de até seis por cento ao ano sobre o valor da diferença eventualmente apurada, a contar da imissão na posse, vedado o cálculo de juros compostos.”

(38) - Bastante oportuna a leitura dos debates havidos na sessão em que a matéria foi decidida. Na opinião do relator, ex-ministro Moreira Alves, a taxa de 6% ao ano para os juros compensatórios era perfeitamente razoável, até porque correspondia à taxa então vigente para os juros de mora no Código Civil de 1916 e para a taxa remuneratória da caderneta de poupança. Para ele, deveria ser suprimida apenas a expressão “até”, evitando assim a possibilidade de que os juros compensatórios pudessem ser fixados em taxa inferior a 6% ao ano. Mas a taxa propriamente dita, embora muito inferior àquela consolidada na jurisprudência do próprio STF, não lhe pareceu inconstitucional, já que a taxa fixada na súmula não poderia ser considerada imutável porque tinha tido apenas a transitória função de suprir uma episódica omissão legislativa. Além disso, a taxa de 12% ao ano se justificava apenas na época em que foi editada, de grande instabilidade econômica, não mais num momento de economia estável. Porém, seus argumentos não convenceram a maioria de seus colegas. Segundo entendimento do ex-ministro Sepúlveda Pertence, a taxa de 12% ao ano fixada na Súmula 618 era expressão daquilo que o STF havia considerado necessário à realização do princípio constitucional da justa indenização pela desapropriação da propriedade imóvel e, portanto, não poderia ser objeto de alteração por meio de medida provisória. Visava também a substituição dos lucros cessantes. Assim, deveria em princípio prevalecer a súmula, pelo menos enquanto a matéria era analisada apenas em caráter cautelar.

(39) -Art. 11, § 1º, da Lei 9868, de 10 de novembro de 1999.

(40) -AgRg nos Embargos de Divergência em REsp 1.132.522-SC (relator ministro Arnaldo Esteves Lima, Publ. DJ-e 06/06/2012) e EDcl no REsp 1.025.965-MA (relator Herman Benjamin, Publ. DJ-e 08/05/2013), no qual consta expressamente a aplicação da taxa de juros compensatórios de 6% até 13/09/2001, pelo menos naqueles processos nos quais a imissão provisória na posse tenha ocorrido posteriormente à entrada em vigor da MP 1577/1997.

(41) -AgRg-RE n° 419.827-PB, 2ª Turma, relator min. Gilmar Mendes, DJe 23/11/2007 (decisão colegiada) e AgRg-RE nº 612.339-MT, 1ª Turma, relator min. Dias Toffoli, DJe 28/03/2012 (decisão colegiada).

(42) -As sessões de 24/10/2013 e 19/03/2014 – nas quais votaram apresentando propostas de modulação de efeitos os ministros Luiz Fux, Roberto Barroso e Teori Zavascki, com o julgamento suspenso em razão do pedido de vista do ministro Dias Toffoli – mostram como será difícil para o colegiado encontrar uma proposta igualmente satisfatória para credores e devedores.

(43) - A hipotética decisão definitiva de declaração de inconstitucionalidade da EC 30/2000 também precisará, portanto, ser objeto de modulação de efeitos, para que o STF decida se os juros eventualmente interrompidos no período da moratória, com base em sua própria jurisprudência, deverão ou não incidir retroativamente no referido período.

(44) - RE 78612 (relator min. Oswaldo Trigueiro, julgado em 03/09/1974, RTJ 71/572) e Conflito de Jurisdição 5944-RS (relator min. Cordeiro Guerra, julgado em 16/10/1975. RTJ 80/683).

(45) - Já que a disposição transitória aplicável a precatórios passados, art. 97 do ADCT, foi declarada inconstitucional principalmente por essa razão.

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*** Artigo postado em 31 de outubro de 2013***


EMBARGOS INFRINGENTES NA AÇÃO PENAL 470

Por Pedro Tavares Maluf*


Talvez quase tanto quanto o próprio mérito da Ação Penal 470, o famoso processo do mensalão, tem causado grande interesse o tema referente à possibilidade ou não de algum recurso da decisão condenatória, mais especificamente, do recurso de embargos infringentes, que poderia ser utilizado pelos réus condenados apenas pela maioria de no máximo sete votos, com quatro votos no mínimo pela absolvição.

Mas dentro dessa única discussão, na realidade três diferentes questões parecem estar em análise. A primeira, se o recurso de embargos infringentes ainda está em vigor; a segunda, se é conveniente no sistema processual brasileiro um recurso como o dos embargos infringentes; a terceira, se é conveniente prolongar ainda mais o processo do mensalão, dando àqueles réus a chance de utilizar esse recurso, situação que em tese poderia leva-los à impunidade. Essa terceira questão não pode ser considerada seriamente, pelo que representa de arbítrio, pois, caso se conclua que o recurso ainda vigora, então é inadmissível pretender impedir os réus de utilizá-lo, seja qual for o argumento para isso.

A segunda questão é uma questão de política legislativa. Como tal, o fórum adequado para debatê-la não é o Supremo Tribunal Federal (STF), mas o Congresso Nacional. Alguns dos ministros que votaram pela inadmissão dos embargos – negando provimento aos agravos regimentais interpostos pelos réus Cristiano Paz e Delúbio Soares contra a decisão monocrática do presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa – invocaram argumentos tais como: a suposta incoerência de admitir embargos infringentes nas ações penais de competência originária do STF, sem que exista recurso similar nas ações penais de competência originária do Superior Tribunal de Justiça; a suposta fragilização da decisão do colegiado do maior tribunal do país, que ficaria sujeito a modificações pela via de um recurso não previsto para situação similar no outro tribunal, STJ; etc.

A essas questões, que são pertinentes sem dúvida, se poderia também responder que a suposta incoerência foi criada pelo próprio constituinte, quando decidiu estabelecer diferentes foros por prerrogativa de função para, por exemplo, membros do Congresso Nacional, que são processados e julgados originariamente pelo STF, e para governadores de Estado, que são processados e julgados originariamente pelo STJ. As decisões dos dois tribunais poderiam ser irrecorríveis ou as decisões de ambos poderiam ficar sujeitas a embargos infringentes, na hipótese de condenação apenas por maioria com determinado número mínimo de votos pela absolvição. Mesmo nesses dois cenários, as situações dos dois tribunais e das pessoas sujeitas às respectivas jurisdições ainda não seriam equivalentes pois, em tese, aqueles condenados pelo STJ poderiam de algum modo tentar se socorrer do STF, enquanto os condenados diretamente pelo próprio STF não teriam outro tribunal a que recorrer. Quando à fragilização da imagem do STF, em razão da possibilidade de modificação da decisão pelo mesmo colegiado que a proferiu, essa situação é inerente à própria forma como o recurso de embargos infringentes foi concebido no art. 333 do Regimento Interno do STF. Portanto, é um problema muito anterior à Ação Penal 470, anterior à Lei 8038/1990, e anterior à própria Constituição de 1988, já que remonta pelo menos à época, 1980, em que foi criado o atual Regimento.

Assim, voltando à primeira questão, só interessa saber se os embargos infringentes ainda estão em vigor já que, até 1990 (quando entrou em vigor a Lei 8038) eles indiscutivelmente vigoraram, pois o art. 333 do Regimento Interno do STF prevê expressamente seu cabimento em cinco hipóteses (o cabimento na hipótese de decisão de procedência da ação penal está previsto no inciso I do art. 333).

Os mecanismos para dirimir os conflitos de leis no tempo, quando de mesmo grau hierárquico, são três: revogação expressa; incompatibilidade entre a lei nova e a lei velha; e a inteira regulação, pela lei nova, da matéria antes tratada na lei velha. A Lei 8038/1990 não revogou expressamente o art. 333 do Regimento do STF, nem trata inteiramente daquela matéria. A Lei 8038 institui normas procedimentais para processos de competência originária do STF e do STJ, mas o faz de maneira muito sumária, determinando a aplicação subsidiária de outras leis em várias situações. Por exemplo: para o mandado de segurança, a Lei 8038 remete à legislação específica da matéria (àquela época, o mandado de segurança era regulado pela Lei 1533/1951 e, atualmente, o é pela lei 12016/2009); para o mandado de injunção e para o habeas data, ela determina a aplicação subsidiária da legislação do mandado de segurança (sendo que o habeas data, tempos depois, passou a ter legislação específica, que é a Lei 9507/1997). Sobre a ação penal originária, a Lei 8038 nada diz sobre o que ocorre após o término do julgamento. Portanto, também não se pode dizer que haja alguma incompatibilidade entre essa lei e aquele dispositivo do regimento. A incompatibilidade, quando ocorre, é sempre muito evidente, como a que existe entre o inciso IV do mesmo art. 333 do Regimento (que prevê embargos infringentes no julgamento das ações de inconstitucionalidade) e o art. 26 da Lei 9868/1999 (segundo o qual, com exceção dos embargos declaratórios, as decisões em ações de inconstitucionalidade são irrecorríveis).

Em nosso modo de ver, o recurso de embargos infringentes na hipótese do art. 333, inciso I, do STF continua em vigor. Essa conclusão de nenhum modo acarretará a impunidade dos réus, já que a admissão dos embargos não implica automaticamente que os ministros darão provimento a esses recursos. Mesmo que seja dado provimento aos recursos, haverá quando muito uma redução das penas, situação muito diversa do que se chama de impunidade.

De resto, o receio de um prolongamento excessivo do processo, com inúmeras sessões para o julgamento dos embargos, se eles forem admitidos, é problema que pode ser mitigado também pelos próprios ministros, possivelmente muito mais prolixos em seus votos do que seria necessário. Basta ver a própria decisão sobre a admissão ou não dos embargos infringentes, que consumiu nada menos que três sessões quando, possivelmente, uma só teria sido suficiente.

*Pedro Tavares Maluf é advogado, mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, procurador municipal de carreira e sócio de Processo & Decisão Consultoria

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*** Artigo postado em 30 de março de 2012***



A LEGISLAÇÃO DO FUNDEB E A FISCALIZAÇÃO FINANCEIRA DOS MUNICÍPIOS

Por Pedro Tavares Maluf*

A Constituição Federal determina no seu art. 212 que os Municípios deverão aplicar 25% (vinte e cinco por cento) de sua receita de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino, e dispõe no art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que parte desses recursos deve ser destinada a um Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), cujo montante deve ser posteriormente distribuído entre os próprios Municípios proporcionalmente ao número de alunos matriculados nas respectivas redes.

Assim, a contribuição anual de cada Município ao FUNDEB é parte da despesa obrigatória com manutenção e desenvolvimento do ensino.

A Lei 11494, de 20 de junho de 2007, que regula o FUNDEB, diz expressamente no § 2º de seu art. 21 que “Até 5% (cinco por cento) dos recursos recebidos à conta dos Fundos poderão ser utilizados no 1º (primeiro) trimestre do exercício imediatamente subsequente, mediante abertura de crédito adicional”.

De certo modo, a lei ordinária está flexibilizando o rigor do dispositivo constitucional, caso se entenda que, uma vez constatada a receita de impostos num determinado ano para fins da verificação de cumprimento da exigência do art. 212 da CF, é possível contabilizar também parte da despesa efetuada com recursos do FUNDEB no primeiro trimestre do exercício seguinte.

Sob este prisma, é até mesmo questionável a constitucionalidade da lei ordinária, já que, segundo ela, matematicamente a aplicação mínima no ensino não estará ocorrendo exclusivamente num único exercício financeiro (quatro trimestres), conforme exigência literal da Constituição, mas dentro de período maior, abrangendo cinco trimestres (um exercício financeiro inteiro e o primeiro trimestre do exercício seguinte). Mas caso seja superado esse aspecto da questão (e a Administração Pública tem a obrigação de presumir a constitucionalidade da lei enquanto não houver uma decisão judicial declarando o contrário), caso se conclua que a lei ordinária não é inconstitucional, então a interpretação da lei só pode conduzir à conclusão de que a despesa a que se refere o art. 21, § 2º, da Lei 11494/2007 pode ser contabilizada como despesa com manutenção e desenvolvimento do ensino no ano anterior pois, do contrário, por qual motivo teria o legislador criado essa faculdade ao administrador público?

Se, por exemplo, um determinado Município tiver arrecadado a título de impostos R$ 400.000.000,00 no ano 2009, então sua despesa com manutenção e desenvolvimento do ensino no mesmo ano não poderá ser, em princípio, inferior a R$ 100.000.000,00. Mas se tiver recebido do FUNDEB, digamos, R$ 60.000.000,00, então 5% desse valor (ou seja, R$ 3.000.000,00) poderá ser despendido no primeiro trimestre do exercício seguinte, 2010. Logo, no próprio exercício da arrecadação, 2009, a despesa mínima necessária seria então de R$ 97.000.000,00 e não de R$ 100.000.000,00, já que para ser atingido esse limite mínimo de despesa (verificação ao atendimento à disposição do art. 212 da CF no ano de 2009) o valor aplicado no primeiro trimestre de 2010 com recursos do FUNDEB poderá ser somado à despesa efetuada no ano anterior, o próprio ano 2009.

Por outro lado, a constatação da correta aplicação dos recursos com educação não pode ficar a cargo, indistintamente, de qualquer ente ou instituição pública, haja vista as duras consequências previstas em lei para os Municípios inadimplentes. A propósito disso, é necessário lembrar que na hipótese de haver aplicação aquém do mínimo previsto constitucionalmente, o Município respectivo ficará impedido de receber transferências voluntárias. Essa proibição está prevista expressamente no art. 25, § 1º, inciso IV, da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000).

Conforme previsto no art. 31 da Constituição Federal, a fiscalização das contas municipais para efeito de controle externo é efetuada por meio da respectiva Câmara de Vereadores com auxílio dos Tribunais de Contas. Logo, somente a este órgão compete fiscalizar cada Município, de acordo com metodologia específica e previamente definida em lei ou regulamento, para o fim de concluir se algum deles está inadimplente e, portanto, impedido de receber transferências voluntárias. Portanto, a nenhum órgão da Administração Pública federal ou estadual (Ministério da Fazenda, Ministério da Educação, etc.) compete de ofício impedir transferências voluntárias a Municípios sob alegação de insuficiente aplicação na manutenção e desenvolvimento do ensino.

O fato de ser voluntária a transferência, e, portanto, discricionária a decisão de realizá-la, não dispensa motivação. Pelo contrário, discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. Portanto, se o motivo invocado pela Administração federal para indeferir a pretensão de determinado Município ao recebimento de transferências voluntárias, for a suposta aplicação insuficiente de recursos financeiros na educação, decisão dessa natureza não pode prevalecer se, como no exemplo dado acima, o percentual mínimo de aplicação no ensino puder ser alcançado com a soma entre a despesa com manutenção e desenvolvimento no ensino realizada no exercício financeiro que estiver sob análise e a despesa do primeiro trimestre do exercício seguinte efetuada com recursos do FUNDEB.

Portanto, mesmo quando for duvidosa uma determinada prestação de contas de algum Município hipotético, se o Tribunal de Contas respectivo nem mesmo tiver feito pronunciamento definitivo a respeito das contas sob análise, então será inadmissível que diferentes órgãos ou instituições da Administração Federal ou Estadual qualifiquem o Município respectivo como inadimplente e com base nisso, deixem de efetuar transferências voluntárias.

*Pedro Tavares Maluf é advogado, mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, procurador municipal de carreira e sócio de Processo & Decisão Consultoria

TAGs: Pedro Tavares Maluf, Advogado, Procurador Municipal, Mestre, Direito Administrativo, PUC-SP, Diadema, Processo & Decisão Consultoria, Legislação, Legislação do FUNDEB, Município, Municípios, Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica, Tribunal de Contas, Lei Complementar 101/2000

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****Artigo postado em 5 de março de 2012****



PRECATÓRIOS: ALGUNS PROBLEMAS ATUAIS

Por Pedro Tavares Maluf *

I – Introdução

Os débitos da Administração Pública provenientes de condenações judiciais, na maior parte dos Estados e Municípios brasileiros, constituem um problema talvez ainda longe de uma solução definitiva.

As Constituições brasileiras anteriores à atual previam apenas que tais débitos, após o recebimento, até 1º de julho, das respectivas requisições expedidas pelos tribunais dos quais provinham as sentenças condenatórias, deveriam ser incluídos nas propostas orçamentárias do exercício financeiro subsequente, dentro do qual o pagamento obviamente deveria ser feito. Ocorre que nem sempre o pagamento feito ao final do exercício financeiro seguinte era suficiente à quitação do débito, seja porque o valor era eventualmente depositado sem a devida atualização monetária (hipótese desastrosa para o credor em período de grande variação inflacionária), seja porque – particularmente em Municípios de pequeno porte e baixa arrecadação – o orçamento efetivamente poderia não comportar o pagamento integral de débitos com valores muito vultosos.

O fato é que a Constituição de 1988, embora mantendo no seu art. 100 a exigência de pagamento integral dos precatórios dentro de um exercício financeiro-orçamentário específico, fixado em função da data de recebimento do precatório pela entidade devedora, reconheceu a existência de um passivo anterior à sua promulgação para cuja quitação seria necessária a concessão de um prazo maior. O reconhecimento desse passivo fez-se por meio da moratória de oito anos prevista no art. 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

No entanto, essa medida não foi suficiente para a solução definitiva do problema, tendo sido necessária uma segunda moratória de dez anos concedida por meio da Emenda Constitucional nº 30, de 13/09/2000 (que introduziu o art. 78 no ADCT), e mais recentemente a instituição de um novo regime jurídico, de adesão facultativa, para aqueles Estados e Municípios ainda inadimplentes com precatórios constituídos anteriormente a alguma daquelas moratórias. O novo regime foi instituído pela recente Emenda Constitucional nº 62, de 09/12/2009 (que introduziu o art. 97 no ADCT). Sua inovação, relativamente ao regime anterior, foi estabelecer a possibilidade de fixação de um teto, dentro de cada orçamento, para a despesa com precatório, desde que respeitado um limite mínimo de despesa anual com pagamento de precatórios calculada proporcionalmente à receita corrente líquida. No caso dos Municípios da região Sudeste, o limite mínimo de despesa corresponde a 1,5% (um e meio por cento) da receita corrente líquida, devendo as respectivas Prefeituras depositar mensalmente 1/12 (um doze avos) desse valor em contas judiciais abertas especialmente para esse fim e administradas pelos Tribunais de Justiça.

Como já era de se esperar, a referida EC 62/2009, quase imediatamente após sua publicação, foi alvo de ações diretas de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, sob relatoria do ministro Carlos Ayres Britto (ADIn 4357, ADIn 4372, ADIn 4400 e ADIn 4425).

Com ou sem a declaração de inconstitucionalidade do novo regime, questão essa bastante polêmica, não se pode negar que a execução de precatórios, por si só, é tema por demais complexo que precisa urgentemente de uma normatização que estabeleça claramente o procedimento a que ela deve se submeter. Nos dias de hoje, nos parecem absolutamente insuficientes as lacônicas disposições dos arts. 730 e 731 do Código de Processo Civil (CPC), segundo as quais compete ao juiz da execução, depois da citação da Fazenda Pública e do julgamento de embargos à execução que eventualmente tenham sido interpostos por ela, requisitar da entidade devedora, por intermédio do Presidente do tribunal respectivo, o pagamento do precatório conforme a ordem cronológica de apresentação, cabendo ainda ao Presidente do tribunal decretar o seqüestro de receita na hipótese de preterição do direito de precedência (inversão da ordem cronológica de apresentação dos precatórios).

II – Problemas decorrentes da EC 30/23000: a possibilidade de seqüestro por inadimplemento no pagamento do precatório e a falta de critérios claros quanto ao cômputo dos juros no período da moratória

A moratória instituída pela EC 30/2000 em benefício das entidades devedoras, foi compensada com a instituição de um instrumento judicial, até então inexistente, em benefício dos credores de precatórios de natureza não-alimentar: o seqüestro de receita, que era previsto apenas na hipótese de preterição do direito de precedência (inversão da ordem cronológica de apresentação dos precatórios), passou a ser previsto também no art. 78, § 4º, do ADCT, para a hipótese de inadimplemento no pagamento das parcelas anuais da moratória.

Assim, ao longo da primeira década do século XXI, no período compreendido entre as datas de promulgação da EC 30 (setembro de 2000) e da EC 62 (dezembro de 2009), ocorreram seqüestros de receita em vários Municípios que não pagaram as parcelas anuais da moratória na sua integralidade.

O problema do seqüestro torna-se ainda mais complexo em razão da inexatidão dos valores a serem seqüestrados já que, ao longo do tempo, começou a tornar-se polêmico nos tribunais superiores o modo de cômputo dos juros. No entendimento dos credores, os juros devem fluir ininterruptamente desde a data de formação do precatório, só cessando na data do respectivo pagamento. No entendimento dos devedores, a fluência dos juros deve ser interrompida em dois períodos:

Quanto ao período de 540 dias, o STF firmou o entendimento – consolidado por meio de sua Súmula Vinculante nº 17 – de que a fluência dos juros deve ser interrompida durante tal período se no final dele o precatório tiver sido integralmente quitado. Permanece a polêmica apenas em relação àqueles precatórios que não tenham sido quitados e que, portanto, tenham sido abrangidos pela moratória para pagamento parcelado.

Quanto ao período compreendido entre 13/09/2000 e a data de vencimento de cada uma das parcelas anuais da moratória, existem precedentes da Primeira Turma do STF – RE 421.616 AgR / SP (agravo regimental em recurso extraordinário) – segundo os quais durante esse período cessa a fluência dos juros, faltando contudo um pronunciamento definitivo sobre o tema por parte do pleno do STF.

Assim, a insegurança quanto aos critérios de cômputo dos juros pode fazer com que, em tese, diferentes precatórios sejam calculados de diferentes modos.

III – Problemas decorrentes do art. 1º-E da Lei 9494/1997: o poder revisional do Presidente do tribunal e o dever de respeito à coisa julgada

As dúvidas surgidas ao longo do processo de execução de precatório – tão maiores quanto maior é o tempo compreendido entre a data da expedição do precatório e a data prevista para seu pagamento (cada vez mais adiada, em razão de moratórias, mudanças de regime para pagamento, etc.) – talvez possam explicar uma outra mudança legislativa, mas essa de nível infraconstitucional.

Trata-se da modificação, ocorrida em 2001 (portanto, pouco tempo depois da promulgação da EC 30/2000), da redação do art. 1º-E da Lei 9494, de 10/09/1997. A nova redação desse dispositivo deu ao Presidente do tribunal o poder de revisão da conta com base na qual cada precatório deve ser pago. Esse pode revisional permite, em tese, que o próprio Presidente do tribunal determine a exclusão dos juros no cálculo do valor do precatório, efetuado administrativamente quando houver requerimento pelo credor de seqüestro de receita da Administração Pública devedora sob o argumento de inadimplemento das parcelas da moratória.

Esse dispositivo legal, como se pode intuir, suscita problemas, já que pode significar uma flexibilização da garantia de imutabilidade da coisa julgada, garantia essa que, embora prevista no art. 467 do CPC (uma lei infraconstitucional), é expressão da função jurisdicional do Poder Judiciário, prevista na própria Constituição Federal.

IV – Entendimento atual: natureza administrativa do processo de execução de precatórios

Porém, o problema é ainda maior do que parece, pois a possibilidade de diferentes critérios de cálculo e a indefinição jurisprudencial sobre eles pode acarretar não apenas tratamento diferente entre diferentes precatórios mas também entre diferentes parcelas de um mesmo precatório.

Isso decorre do seguinte: a jurisprudência consolidou o entendimento de que o processo de execução do precatório possui uma natureza administrativa, ao qual não se aplica, por essa razão, a legislação federal de processo judicial civil. Essa jurisprudência está sintetizada na Súmula 733 do Supremo Tribunal Federal e na Súmula 311 do Superior Tribunal de Justiça.

A circunstância de que o processo de execução do precatório possui uma natureza administrativa e não judicial acarreta conseqüências técnicas problemáticas, pois ao contrário do processo judicial de execução – que tem uma disciplina bastante detalhada no Código de Processo Civil – o processo administrativo de execução de precatório é totalmente carente de uma legislação que estabeleça uma disciplina clara para ele.

Além disso, se o poder revisional outorgado ao Presidente do tribunal por meio do art. 1º-E da Lei 9494/1997 é expressão de uma função administrativa (já que o processo de execução de precatório tem natureza administrativa) e não da função jurisdicional, típica do Poder Judiciário, então para quem entenda que esse poder acarreta modificação da sentença (cuja imutabilidade é prevista no art. 467 do CPC mas como expressão de uma garantia constitucional), tal poder seria obviamente inconstitucional.

Assim, o problema da natureza administrativa do processo de execução de precatório desdobra-se em duas frentes:

As duas questões se interpenetram.

Sobre o art. 1º-E da Lei 9494/1997 é preciso dizer que a simples razão de sua existência é um reconhecimento tácito, pelo legislador, de que a fase de execução do precatório é problemática, mas o dispositivo por si só é obviamente insuficiente para enfrentar o problema do qual ele deveria ser supostamente a solução. Os tempos atuais demonstram que a fase de execução do precatório pode ser tão complexa, processualmente falando, quanto a fase de liquidação de sentença, que antecede a expedição do precatório. Logo, deveria haver uma legislação nova, que atribuísse à execução do precatório uma natureza judicial e que facultasse a ambas as partes – credor e devedor – a utilização de instrumentos judiciais seguros e específicos para o questionamento dos cálculos de atualização do precatório utilizados pelo Presidente do tribunal.

Antes da expedição do precatório, durante a fase de liquidação da sentença judicial condenatória, a controvérsia sobre os cálculos pode ser dirimida judicialmente por meio do mecanismo dos embargos à execução, previsto no já referido art. 730 do CPC.

Mas depois da expedição do precatório, de acordo com a legislação atualmente em vigor, para a solução da nova controvérsia – não mais sobre os critérios de definição do valor exato a ser requisitado da entidade devedora, e sim sobre os critérios de atualização desse valor até a data de seu efetivo pagamento – não existe um instrumento judicial específico similar aos embargos à execução. Muito embora fatos novos ocorram em momento posterior à expedição do precatório, fatos esses que podem tornar controvertido o valor atualizado do saldo do precatório (tais como as moratórias, que podem ou não interromper a fluência de juros, e as variações na conjuntura econômica, que podem acarretar dúvida sobre a correta variação inflacionária do período e sobre os índices de correção monetária a serem utilizados), não existe um mecanismo judicial específico aplicável a essas situações.

Em outras palavras: após a expedição do precatório não é possível a utilização, por nenhuma das partes, de algum instrumento similar aos embargos à execução, razão pela qual o questionamento das decisões administrativas do Presidente do tribunal tomadas na fase de execução do precatório (por exemplo, decretando seqüestro de receita por inadimplemento da Fazenda Pública no pagamento das parcelas da moratória, ou determinando a exclusão de juros no período da moratória), caso se pretenda fazê-lo pela via judicial, costuma ser feito por meio de mandado de segurança, mecanismo judicial que – diferentemente dos embargos à execução – não admite dilação probatória.

V – Conclusão

De modo conclusivo, afirmamos a necessidade de uma nova legislação (tanto de nível constitucional, quanto de nível infraconstitucional) que estabeleça expressamente normas de processo judicial aplicáveis especificamente ao processo de execução de precatório.

*Pedro Tavares Maluf é advogado, mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, procurador municipal de carreira e sócio de Processo & Decisão Consultoria

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